sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Caros amigos,
com o único intuito de socializar a produção científica, segue abaixo um artigo recente de nossa lavra submetido ao Prêmio Saber Dom Adélio Tomasin, por ocasião do V Encontro de Extensão, Docência e Iniciação Científica e vencedor (1º lugar) na categoria "artigos jurídicos". Devidamente registrado nos anais do citado encontro, será em breve publicado na Revista Expressão Católica (ISSN 2175-8441), de nossa Faculdade Católica Rainha do Sertão. Infelizmente, a formatação não nos possibilitou a inserção das referências bibliográficas. Quem desejar o texto integral, terei prazer de enviar. Deixe um comentário solicitando-o, juntamente com o endereço eletrônico.
Rendamos graças a Deus, pois o bom senso vem reinando, ad maiorem Dei gloriam.
Abraço a todos,
Renato.
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A LEGALIDADE DO ACORDO ENTRE A
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL
E A
SANTA SÉ
RELATIVO AO ESTATUTO JURÍDICO DA IGREJA CATÓLICA NO BRASIL


RENATO MOREIRA DE ABRANTES
ALCYVANIA MARIA CAVALCANTE DE BRITO PINHEIRO (Orientadora)


RESUMO

As mais sérias democracias do mundo já firmaram com a Santa Sé, pessoa jurídica de direito público internacional, pactos que têm por finalidade assegurar direitos consagrados em diversos diplomas legais, sejam eles internacionais, sejam eles nacionais, entre os quais, o de os cidadãos livremente professarem uma religião, cujo culto seja garantido pelo Estado, e o de a religião ser reconhecida juridicamente como um ente portador de direitos e de deveres. Somente em 2008, cento e vinte anos após a proclamação da República Federativa do Brasil, foi firmado o Acordo Bilateral entre a Santa Sé e o Estado Brasileiro e, segundo as normas internas, em 2009, para ter validade, ratificado pelo Congresso Nacional. A discussão gravitou em torno dos juristas e de parte da população que, de um lado, criticaram e apontaram o Acordo como discriminante das demais denominações religiosas e como concessor de privilégios à Igreja Católica, e de outros, que consideram o Acordo Relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil, longe de tornar-se um óbice a eventuais pactos entre o Estado Brasileiro e demais segmentos religiosos que tenham uma estrutura jurídica, plenamente amparado pelo diploma constitucional, não ferindo em nada a equanimidade do Estado laico. Traz consigo a afirmação da liberdade religiosa, e, da mesma forma, a preservação da liberdade da prática da religião católica, majoritária entre a população brasileira; reafirma o reconhecimento mútuo das relações centenárias já existentes, fortalecendo-as e incentivando-as por meio da manutenção de direitos constitucionais já garantidos; estabelece os marcos reguladores da não interferência do Estado em assuntos internos, assim como aos que professam a religião católica da liberdade de o fazerem publicamente; reafirma à Igreja as condições para uma melhor consecução de suas finalidades evangelizadoras. À guisa de conclusão, inferimos com estes últimos juristas a plena legalidade deste ato jurídico.


INTRODUÇÃO

O dia 13 de novembro de 2008 pode ser considerado um marco para a história da Igreja no Brasil. Depois de mais de vinte anos de trabalhos sigilosos e cuidadosos, foi assinado o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil.

Com um atraso de 119 anos, a contar da data da Proclamação da República, quando foi decretada a separação entre Igreja e Estado, o Acordo Internacional vem preencher uma lacuna jurídica e responder a um imperativo de justiça para com uma instituição que por cinco séculos se faz presente neste país.

Longe de angariar privilégios, concessões e benefícios para a Igreja Católica, o Acordo Igreja-Estado é sinal de maturidade política e jurídica da nação brasileira que, a exemplo de inúmeras outras nações de primeiro mundo, já têm seus acordos firmados com diversas denominações religiosas, cristãs ou não.

O conceito de laicidade não passa pela ideia de que o Estado de destruir, ser o perseguidor da religião. Longe disto, o Estado deve ser o grande colaborador para que a religião cumpra seu papel de, também, ser pacificadora social, numa vertente claramente espiritual, tocando o temporal.

A Igreja não se furta de dialogar com os mais absurdos regimes, mesmo totalitários, quando está em jogo o bem comum e a paz. A Santa Sé, e não o Vaticano, nunca se fecha a este diálogo e, mesmo, repudiada, não repudia, mas, pacientemente, aguarda o momento certo para voltar ao diálogo, perita que é em humanidade, cumprindo o doloroso martírio da paciência.

Quer ser este breve opúsculo uma contribuição para a reflexão de tema tão atual. Quer ser este modesto trabalho uma homenagem àqueles que, nos bastidores, sem aparecer e sem receber aplausos, colaboraram para a concretização deste momento, tão aguardado por muitos.


1. EXPLICANDO UM TRATADO INTERNACIONAL

No mundo da diplomacia já está consolidado o conceito de Tratado Internacional. Segundo Husek, tratado “é o acordo formal concluído entre os sujeitos de Direito Internacional Público destinado a produzir efeitos na órbita internacional”. Traz em seu bojo a manifestação da vontade das partes e significa um ato jurídico perfeito, desde que atenda aos requisitos de validade, quais sejam, a capacidade das partes contratantes, a habilitação dos agentes signatários, o consentimento mútuo e o objeto lícito e possível.

A história dos tratados entre os povos remota “ao acordo de paz celebrado entre Hatusil III, rei dos hititas, e Ramsés II, faraó egípcio. Este acordo, que ficou conhecido como tratado de Kadesh, foi celebrado por volta de 1280 a 1272 a.C. e pôs fim à guerra nas terras sírias.” Mas, somente no século XX, depois de muitos usos e costumes consolidados, as regras usuais foram codificadas pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, celebrada em 22 de maio de 1969. Dentre os princípios norteadores do direito internacional, aplicam-se aos tratados o princípio segundo o qual “os pactos devem ser observados” (pacta sunt servanda), garantidor da segurança jurídica a partir da qual as partes adquirem confiança e liberdade para agir.

Os efeitos jurídicos de um tratado, quando celebrado validamente, são a geração de direito e obrigações para as partes contratantes no plano interno e externo. Via de regra, não se obrigam a um tratado o país que dele não seja signatário.

Até o seu registro e observação, as fases de negociação, assinatura, ratificação, promulgação e publicação se antecedem.

Um tratado pode extinguir-se por vontade das partes (ab-rogação), por tratado superveniente sobre o mesmo assunto em que todas as partes do tratado anterior sejam envolvidas, superveniência de norma imperativa oriunda do direito internacional geral, vontade unilateral ou denúncia de alguma irregularidade ou transgressão ou omissão de alguma obrigação.

Os tratados podem ser bilaterais ou multilaterais (quanto ao número de partes), normativos ou contratuais, conforme produzam tratados-lei ou tratados-contrato, strictu senso ou latu sensu, conforme exijam ou não ratificação dos atos do Poder Executivo por parte do Poder Legislativo, solenes ou simplificados.

O Brasil é um dos signatários da Convenção de Viena e constitucionalmente atribui ao Congresso Nacional a incumbência de ratificar os Tratados Internacionais firmados pelo Executivo . No ordenamento jurídico pátrio, cabe ao Poder Judiciário o controle da constitucionalidade de tais atos.

2. HISTÓRICO DO ACORDO SANTA SÉ – REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL

Motivada pelo exemplo de outras nações e pelas necessidades da Igreja no Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deu início, no ano de 1989, ao estudo de todos os aspectos pertinentes ao acordo entre o Estado brasileiro e a Igreja, no que tange à sua personalidade jurídica e, necessariamente, aos direitos inerentes a seu status.

A partir da assinatura do tratado a respeito da Assistência Religiosa junto às Forças Armadas, percebeu-se que havia terreno favorável para o início dos estudos e das conversações com o governo federal, via Nunciatura Apostólica, sobre o Acordo Internacional ora firmado e em trâmite de aprovação no Congresso Nacional.

Buscava uma “lei referencial” solene reconhecida no âmbito internacional, assinada pelos autos signatários dos dois Estados: Santa Sé-Brasil.

Segundo o Pe. Gervásio Fernandes de Queiroga, ex-assessor jurídico da Presidência da CNBB e membro da Comissão Especial de Normatização das Relações Igreja Estado, esta lei é intitulada de “Acordo”, e não “Concordata”, pelo fato de que esta supõe ter havido litígios e supõe concessões, o que não acontece no caso do Acordo que, novidade histórica, tem o mesmo valor.

De bastante valia será conhecer a gênese do Acordo Igreja-Estado, desde sua origem até a hodierna expectativa de aprovação pelo Senado da República (uma vez que já o foi pela Câmara dos Deputados). Fonte bibliográfica privilegiada, para não dizer única, é o Comunicado Mensal da CNBB, órgão oficial da CNBB, particularmente os que trazem a síntese das Assembléias Gerais desde o ano de 1990, quando a problemática passou a ser discutida pelos senhores Bispos.

Podemos dividir a História do Acordo em dois grandes momentos, a saber, desde a formação da Comissão Especial de Normatização das Relações Igreja Estado e seu período de atividades intensas até o momento em que praticamente é cessada a função da mesma (1990-1996) e, segundo período, desde 1996, quando foram retomadas, por iniciativa do novo Núncio as conversações em torno do assunto até a assinatura do Acordo entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil (1996-2008).

2.1. PRIMEIRO PERÍODO

Assinado o Acordo sobre Assistência Religiosa às Forças Armadas no dia 23 de outubro de 1989, em que figuram como partes contratantes a Santa Sé, então representada pelo Núncio Apostólico, S.Ex.cia Rev.ma, D. Carlos Furno, e a República Federativa do Brasil, então representada pelo então secretário geral do Ministério das Relações Exteriores, o Sr. Paulo Tarso de Flecha Lima, a atmosfera diplomática parecia por demais favorável. O país emergia de um período singular, em que os Governos Militares exerciam forte influência no sentido de coibir qualquer investida externa que abalasse a Segurança Nacional.

Em 1990, a 28ª Assembléia Geral da CNBB abordava a portaria da então ministra da economia, a senhora Zélia Cardoso de Melo, que definiu englobou num termo só, “Mitra Diocesana”, as Arquidioceses, Dioceses e Prelazias. Dom Ivo Lorscheiter, Bispo de Santa Maria (RS), um dos grandes expoentes do Episcopado Nacional, “passou a comentar o texto 22/28ª AG, sobre status jurídico da Igreja Católica diante do Estado brasileiro. Foi distribuída uma folha anexa para que sejam acrescentados outros problemas sentidos e sugeriu à Presidência da CNBB a constituição de uma comissão para estudar o assunto.”

Por ocasião da mesma Assembléia,

"Dom Ivo Lorscheiter apresentou uma síntese dos problemas que a assembléia formulou no que se refere ao tema ‘Status Jurídico’ e a sugestão de que a CNBB constitua uma comissão episcopal que, com a ajuda de canonistas e juristas, equacione e solucione os problemas do status jurídico das dioceses. Também foi sugerido um acordo formal do Estado brasileiro com a Santa Sé."

Pela primeira vez numa Assembléia Geral da CNBB a palavra “Acordo” foi pronunciada, bem como feita a proposta de que a formação de uma comissão episcopal fosse formada. Tal comissão já estava formada: “Comissão para estudo da figura jurídica da Igreja diante do Estado (finanças das Dioceses): D.David Picão, D. Oneres Marchiori, D. Geraldo Ávila e D. Ivo Lorscheiter” .

A idéia foi aceita pela esmagadora maioria dos antístites do Brasil, mas rechaçada por outros que viam num possível acordo deste tipo algo como que “entregar a cabeça da Igreja numa bandeja de prata nas mãos do Estado”. Não obstante algumas resistências, a Comissão trabalhou incessantemente até 1996.

Na Assembléia seguinte, a 29ª, realizada em 1991, Dom Celso Queiroz pediu a Dom Ivo Lorscheiter que apresentasse o resultado até então obtido dos estudos e consultas realizados pela Comissão:

"D. Ivo Lorscheiter informa sobre o resultado das opiniões dadas pela Assembléia: 254 bispos responderam no questionário, demonstrando grande interesse. 1ª questão: deseja que a Comissão Especial continue os trabalhos conforme os critérios seguidos até agora? – Sim, 249; não 1; não opinam 4; 2ª – Deseja que o Conselho Permanente acompanhe o trabalho da Comissão? Sim – 226, Não 9; não opinam, 19; 3ª A normatização jurídica da Igreja e o Estado é feita através de acordo, V.Excia. concorda com esse trabalho? Sim, 244; não 4; não opinam 9; 4ª Quer que a Comissão procure outras alternativas? Sim, 167; não 33; não opinam 54; D. Ivo informa que os itens necessários ao acordo entre a Sta. Sé e o Estados são apontadas por D. Ângelo Sodano – Pró-Secretário de Estado – no acordo feito entre a Espanha e a Sta. Sé, e entre esta e o Peru. D. Ivo sugere que a nova Presidência constitua outra comissão, pois a atual encerra aqui sua função. Entregará em dossiê para continuação do trabalho."


Nítido é o consenso do Episcopado, ao considerarmos o universo de 254 bispos opinantes: da continuidade dos trabalhos, 249 sim, 01 não e 04 abstenções; da concordância com a normatização realizada através de Acordo, 244 sim, 04 não e 09 abstenções.

No entanto, a quase unanimidade se desfaz à pergunta a respeito de busca de alternativas ou elementos a serem abordados no Acordo: 167 sim, 33 não, 54 abstenções.

Dom Ivo Lorscheiter leu para a Assembléia comunicado das atividades realizadas pela Comissão, transcrita abaixo na íntegra:

"A Comissão Especial, indicada pela Presidência para tal tarefa, consta atualmente de D. Ivo Lorscheiter como coordenador, Dom Benedito Ulhôa, Dom Geraldo Ávila, Dom Rafael Llano Cifuentes, Pe. Cristóbal Álvares, Pe. Jesus Hortal, Prof. Dr. Viotti, Pe. Gervásio Fernandes de Queiroga. Por quatro vezes ela se reuniu. Prestou informações às duas reuniões do Conselho Permanente de 1990, bem como prestou informações à Presidência e CEP de março último, do que procurou fazer e que se pode assim resumir:
a – pesquisa nas fontes do direito brasileiro sobre a matéria, seja na legislação, seja na jurisprudência dos Tribunais e doutrina dos juristas; obteve-se para isto, a colaboração de um perito: o Prof. Dr. Viotti, em Brasília;
b – coleta e estudo de soluções adotadas em outros países, trabalho feito pelos Pes. Jesus Hortal e Gervásio F. de Queiroga;
c – estudo em Comissão das necessidades e implicações pastorais, em face das normas vigentes ou a serem propostas;
d – consulta, ainda informal, à Santa Sé, através do diálogo entre o coordenador da Comissão (Dom Ivo) e o pró-Secretário de Estado de Sua Santidade o Papa João Paulo II.
Após esses passos dados, a Comissão Especial, em março passado, chegou à conclusão unânime de que a mais estável, segura e talvez mais fácil forma de normatização seria através de acordo (convenção), entre a Santa Sé e o Estado brasileiro, segundo o direito público internacional. Dados conjunturais indicam que talvez se possa chegar a bom termo, em tempo não dilatado. A via legislativa ordinária teria grandes percalços e consequências políticas, quer a iniciativa partisse do executivo, quer do legislativo. A via judiciária só é patente em caso de direito controvertido e não vincula as partes senão no caso em litígio, não tendo de per si um valor normativo geral."


Em 1992, foi realizada a 30ª Assembléia Geral. Na Privativa do dia 06 de maio, Dom Ivo foi chamado a dar esclarecimentos a respeito do texto elaborado pela Comissão. Assessorado pelo Pe. Gervásio F. de Queiroga, Dom Ivo comentou intervenções de alguns Bispos, entre os quais, Dom Adélio Tomasin, então Bispo diocesano de Quixadá.

O Pe. Gervásio F. Queiroga, membro da Comissão explicou que:

"...o ‘texto’ é apenas uma primeira proposta para ser apresentada à Nunciatura do Brasil. Corresponde àquilo que os Bispos solicitaram à Comissão no início dos trabalhos. A negociação poderá ser feita por partes.
Pe. Gervásio Queiroga apresentou a situação atual da Igreja no Brasil, após o padroado da Colônia e do Império e o laicismo da Velha República, até Getúlio Vargas. O relacionamento feliz ou infeliz depende não de uma situação jurídica definida, mas da boa ou má vontade e das concessões do Governo e seus funcionários. Há um clima permanente de indefinição do que se pode ou não fazer, variando a situação continuamente de lugar a lugar e no mesmo lugar de governante a governante, de funcionário a funcionário. Daí, a urgência de uma estabilidade, não a partir de concessões ou privilégios (que ninguém mais deseja), mas de reconhecimento daquilo que é a Igreja e dos direitos que decorrem de sua natureza institucional. A escolha da solução por via de Acordo entre Santa Sé e Governo decorreu da constatação de que é a via mais rápida, menos cheia de percalços internos e de maior garantia jurídica, como o demonstra a História do Direito Público Eclesiástico. Não é de forma alguma o retorno à era das Concordatas com regimes autocráticos, em que a Igreja devia ceder parte de seus direitos e liberdade, para conquistar determinados privilégios. A própria Assembléia Geral da CNBB aprovou o encaminhamento do Acordo, por quase unanimidade (apenas 4 votos contra e 6 não opinaram).
O texto que D. Ivo apresentou é ainda uma primeira tentativa de elaboração daqueles pontos considerados importantes pelos Bispos, consultados há dois anos na 28ª Assembléia Geral, e pela Comissão Especial nomeada pela Presidência. Não se trata de um texto definitivo e pronto para ser aprovado pelas partes contratantes.
O Acordo a que se quer chegar não é uma Concordata, nem vai criar um estatuto privilegiado, só para a Igreja Católica. As demais Igrejas terão facilitada a via para conseguir igual reconhecimento de seus direitos.
Quase tudo o que está redigido no presente texto provisório é direito irrenunciável da Igreja. Muitas coisas já são reconhecidas na Constituição ou em lei ordinária. Pouquíssimos itens seriam novidades, cuja oportunidade poderia ser discutida. Da maioria dos pontos propostos o que se deseja é consolidar juridicamente, melhor determinar, facilitar sua aplicação cotidiana. Seguramente, de todos os capítulos o que parece mais indubitável e irrenunciável é o primeiro, referente à personalidade jurídica da Igreja e suas entidades e à sua liberdade de organização e atuação.
Não é necessário, nem talvez viável negociar todo o conjunto de propostas. Pode-se perfeitamente desmembrar em vários Acordos sucessivos, como se fez em outros países. Cremos que se poderia começar pelo Capítulo fundamental, referente à personalidade e liberdade da Igreja Católica, face ao Estado."


Percebe-se, na intervenção do Pe. Gervásio F. de Queiroga, diversos aspectos elucidativos, a saber, o da situação histórica da Igreja no Brasil, o fato de que os problemas surgidos entre o relacionamento Igreja-Estado, nem sempre pacífico, só será solucionado de forma segura, juridicamente falando, por meio de um Ato Jurídico Internacionalmente Reconhecido e que, de forma alguma, remete a reflexão aos tempos das Concordatas com governantes tirânicos, em que a Igreja tinha que ceder alguns direitos para lucrar algumas concessões. Não se trata aqui, com um Acordo, de buscar concessões e privilégios, mas, sim, alcançar um patamar de liberdade de ação e de garantia de direitos.

Nesta mesma oportunidade, Dom Celso Queiroz, então Secretário-Geral da CNBB consultou a Assembléia a respeito da continuidade da Comissão quanto à parte jurídica, que se manifestou favorável.

Os anos de 1993 e 1994, com a realização das 31ª e 32ª Assembléias Gerais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, foram dedicados à elaboração de um texto que foi intitulado de “Pontos Fundamentais sobre a Normatização das relações Igreja-Estado”. Este texto foi apresentado na Assembléia de 1994 por D. Ivo Lorscheiter, com a assessoria do Pe. Gervásio F. de Queiroga, como que atendendo ao desejo da Santa Sé de que o Episcopado se pronunciasse através de votação.

Assim, “Dom Ivo Lorscheiter – Apresentou e explicou com a assessoria do Pe. Gervásio Queiroga os ‘Pontos fundamentais sobre a normatização das relações Igreja-Estado’ e o desejo da Sé Apostólica de que o Episcopado Brasileiro se pronuncie formalmente através de votação” .
Em 1996, sob a Presidência de S.Ex.cia, o Em.mo Sr. Dom Lucas Cardeal Moreira Neves, e sob o secretariado de S.Ex.cia Rev.ma Dom Raymundo Damasceno de Assis, atual Arcebispo de Aparecida e então Bispo auxiliar de Brasília, aconteceu a 32ª Assembléia Geral da CNBB.

Convidado a pronunciar comunicação a respeito da Normatização das relações Igreja-Estado e interrogado sobre a possibilidade de todos os Bispos terem em mãos o texto do projeto, Dom Ivo Lorscheiter

"...lembrou ao plenário a discrição necessária quanto ao assunto que será tratado e o cuidado que deverão ter com os papéis que têm em mãos sobre o mesmo. Passou então a um resumo dos passos dados nas relações CNBB-Nunciatura Apostólica, no encaminhamento do assunto desde a última Assembléia. Encerrou a exposição com uma solicitação pessoal de que a Presidência da CNBB mostre à Secretaria de Estado e à Nunciatura Apostólica a importância de o assunto ter rápido encaminhamento."


Dom Lucas Moreira Neves, dando uma resposta que chamou de provisória, disse que a ocasião para se conversar com o Cardeal Sodano seria da próxima audiência com o Santo Padre, a ser feita pela Presidência da CNBB, que levará a ele os relatórios da presente Assembléia

Discrição era a palavra de ordem a partir de então. Já havia um texto elaborado a ser apresentado à Sé Apostólica (mais precisamente à Secretaria de Estado de Sua Santidade) e à Nunciatura Apostólica. O receio era o de que todo o esforço até então realizado fosse prejudicado por interpretações errôneas e preconceituosas, como de fato aconteceu ao ser assinado o Acordo, já em 2008, e ao ser aprovado pela Câmara Baixa do Congresso Nacional. Os protestantes, como de fato aconteceu, poderiam chegar ao absurdo do boicote, na tentativa de impedir que o Acordo fosse assinado e ratificado.

Portanto, começava-se a exigir do Episcopado reservas quanto ao assunto. Tanto que, o então Núncio Apostólico solicitava que a documentação não fosse entregue ao Episcopado como um todo, motivado pelas causas acima elencadas.

Foi lida nota por Dom Ivo Lorscheiter, presidente da Comissão Episcopal, a qual, pela sua importância e caráter sintético, transcrevemos na íntegra:

"A- A consciência da necessidade de uma clarificação e consolidação jurídica das relações entre a Igreja e o Estado brasileiro foi-se avolumando, a partir das tensões do período dos governos militares e pela percepção de que não mais possível no mundo moderno pluralista e até alérgico à religião uma instituição do peso histórico e dimensão social da Igreja Católica ficar à mercê da boa ou má vontade dos detentores do poder civil e de seus funcionários subalternos.
B- O impasse do Plano Collor, em 1990, retendo indevidamente os recursos financeiros da Igreja e inviabilizando muitas de suas obras e atividades, foi a ocasião para que o Episcopado em sua 28ª Assembléia Geral refletisse sobre a situação, nos aspectos históricos e atuais, e decidisse pela formação de uma Comissão Episcopal especial, para estudo do assunto, levantamento da legislação pertinente, formulação de temas e textos de eventual acordo jurídico entre a Igreja e o Estado, reflexão sobre que caminho escolher para viabilizá-lo
C- A partir de então, praticamente em todos os Conselhos Permanentes e Assembléias, esta problemática esteve presente.
D- A Nunciatura Apostólica e a própria Secretaria de Estado foram informadas, através de contatos pessoais e entrega de documentação.
E- RESUMO DOS PRINCIPAIS PASSOS DADOS:
1. A Assembléia Geral de 1991, com apenas 01 voto contra, confirmou a Comissão Especial e seus critérios de trabalho: aprovou, com apenas 03 votos contra, que a normatização entre a Igreja e o Estado brasileiro se fizesse através de um acordo ou convenção entre Governo brasileiro e a Santa Sé. Fez também uma primeira abordagem dos temas que poderiam ser incluídos no projeto de acordo.
2. A Assembléia Geral de 1992, após amplo e sofrido debate, aprovou por quase unanimidade o prosseguimento dos trabalhos da Comissão Especial e os temas relativos à personalidade e liberdade de ação da Igreja, sem excluir a possibilidade de o Conselho Permanente, no intervalo entre as Assembléias, poder inserir algum outro ponto relevante.
3. A crise do Governo Collor e mudança de Núncio impediram maiores avanços entre 1992 e 1993. Trabalhou-se no melhoramento e enxugamento do texto e fizeram-se contatos com o Governo Itamar e a Nunciatura. O novo Núncio pediu um novo pronunciamento da CNBB sobre os temas a serem incluídos num eventual acordo.
FORAM APROVADOS:
a) Os princípios de independência, autonomia e colaboração com o Estado (por unanimidade).
b) A personalidade da Igreja (01 voto contra).
c) Liberdade da Igreja (unanimidade).
d) Matrimônio (14 votos contra).
e) Educação (01 voto contra).
f) Bens econômicos e direitos fiscais (unanimidade).
4. Com um memorandum do Presidente da CNBB, os pontos aprovados foram encaminhados à Nunciatura.
5. A pedido da Nunciatura, a Assembléia de 1994 estudou e aprovou por impressionante unanimidade um texto, encaminhado depois, mais uma vez, pelo Presidente da CNBB à Nunciatura.
6. A partir daí, a função da Comissão, através de seu Coordenador, tem-se limitado a contatos com o senhor Núncio Apostólico.
7. Observação final pessoal: julgo útil que a Presidência da CNBB mostre à Secretaria de Estado e à Nunciatura Apostólica a importância de o assunto ter rápido encaminhamento.
Itaici, abril de 1996.
+ José Ivo Lorscheiter"

Este foi o último ato público da Comissão Episcopal. Como se constata na fala do próprio Dom Ivo Lorscheiter, “a função da Comissão, através do seu Coordenador, tem-se limitado a contatos com o senhor Núncio Apostólico”.

Após esta fase, começa o período de silêncio a respeito do assunto que, coincidentemente, vai perdurar até a mudança de Núncio Apóstolico. A S. Ex.cia Rev.ma, D. Alfio Rapisarda (1992-2002), sucede S.Ex.cia Rev.ma, D. Lorenzo Baldiseri (2002-...) que, a partir de então, retoma, de forma sigilosa, na Nunciatura Apostólica, reuniões com membros da antiga Comissão Episcopal e assessores da mesma, para, meritoriamente, levar a cabo o trabalho de mais de vinte anos.

Ironia, ou meandros do mundo diplomático, transferido para a Nunciatura Apostólica de Portugal, D. Alfio Rapisarda foi o responsável pelas tratativas finais do Acordo firmado entre a Santa Sé e o Estado português.

2.2. SEGUNDO PERÍODO

Não dispomos de nenhum material bibliográfico que trate deste segundo período (1996-2008). O silêncio foi rompido pelas reuniões sigilosas acontecidas na Nunciatura Apostólica com vistas a elaboração do texto final do Acordo e consequente assinatura entre Altas Partes Contratantes.

O novo Núncio Apostólico, D. Lorenzo Baldiseri, designado por S.S., o papa João Paulo II, sensível à situação de instabilidade jurídica do Brasil, decidiu dar continuidade aos trabalhos iniciados pela CNBB no ano de 1990, através da Comissão Especial de Normatização das Relações Igreja-Estado até que, solenemente fosse assinado o Acordo, no dia 13 de novembro de 2008, vindo a ser ratificado pela Câmara dos Deputados aos 26 de agosto de 2009 e que aguarda aprovação no Senado.

Neste ínterim, aos 23 de dezembro de 2007, falece o ex-Presidente da Comissão, S. Ex.cia Rev.ma, D. José Ivo Lorscheiter, sem ver colhidos os frutos de seu trabalho.


3. ELEMENTOS PONTUAIS DO ACORDO IGREJA-ESTADO

Os pontos mais polêmicos do Acordo firmado entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil são, seguramente, os que a mídia mais destaque deu, quais sejam, a questão do ensino religioso nas escolas públicas, as isenções fiscais e as imunidades de entidades perante as leis trabalhistas.

Cremos que, por ignorância política e também jurídica, um verdadeiro batalhão de críticas, muitas das quais sem nenhum fundamento, vociferaram contra o Acordo ora analisado neste artigo.

Analisemos neste capítulo alguns dos vinte artigos que compõem o texto do Acordo, dando o devido embasamento legal para ao que está exposto.

3.1. DA PERSONALIDADE JURÍDICA DAS INSTITUIÇÕES DA IGREJA

"Art. 3º § 2º. A personalidade jurídica das Instituições Eclesiásticas será reconhecida pela República Federativa do Brasil mediante a inscrição no respectivo registro do ato de criação, nos termos da legislação brasileira, vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro do ato de criação, devendo também ser averbadas todas as alterações por que passar o ato."

Não poucas vezes, os Bispos do Brasil, nas Assembléias da Conferência Episcopal fizeram referência ao modo como a Igreja, nas diversas localidades, é tratada, variando este tratamento de acordo com a índole dos governantes ou dos funcionários subalternos dos governos. O reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja e de suas instituições (Conferência Episcopal, Províncias Eclesiásticas, Arquidioceses, Dioceses, Prelazias Territoriais ou Pessoais, Vicariatos e Prefeituras Apostólicas, Administrações Apostólicas, Administrações Apostólicas Pessoais, Missões Sui Iuris, Ordinariado Militar e Ordinariados para os Fiéis de Outros Ritos, Paróquias, Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica) se fazia um imperativo de justiça.

Não se trata aqui de nenhum privilégio ou de nenhuma concessão feita à Igreja Católica, uma vez que já o Código Civil Brasileiro assegura às organizações religiosas não apenas a livre criação, organização, estruturação interna e funcionamento, mas veda ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro de seus atos constitutivos que sejam necessários ao seu funcionamento.

Assim, pela assinatura e ratificação do citado Acordo, corroborada está a assertiva já feita em diploma legal promulgado em 2002, sete anos antes.

3.2. DAS IMUNIDADES, ISENÇÕES E BENEFÍCIOS

"Art. 5º. As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º, que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social, desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira.

Art. 13. Às pessoas jurídicas eclesiásticas, assim como ao patrimônio, renda e serviços relacionados com as suas finalidades essenciais, é reconhecida a garantia de imunidade tributária referente aos impostos, em conformidade com a Constituição brasileira.
§ 1º. Para fins tributários, as pessoas jurídicas da Igreja Católica que exerçam atividade social e educacional sem finalidade lucrativa receberão o mesmo tratamento e benefícios outorgados às entidades filantrópicas reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, inclusive, em termos de requisitos e obrigações exigidos para fins de imunidade e isenção."


Novamente aqui, longe de se privilegiar a Igreja Católica, o Acordo entre a Santa Sé e o Estado brasileiro reafirma o dispositivo constitucional que veda ao poder público instituir impostos sobre “templos de qualquer culto”.

A respeito desta problemática o Supremo Tribunal Federal, julgando Recurso Extraordinário impetrado pela diocese de Jales, em data de 18 de dezembro de 2002, deu-lhe provimento, reconhecendo o direito à imunidade tributária, de forma ampla e irrestrita. A questão ficou conhecida como “questão Jales” e versava sobre cobranças indevidas do IPTU por parte da Prefeitura Municipal de Jales sobre os bens imóveis da diocese de Jales. Entendeu o STF que este direito estende-se "ao patrimônio, rendas e serviços", não se limitando, portanto, ao "templo". Criou-se, assim, jurisprudência que vem a socorrer todos os casos que, por analogia se enquadrem em semelhante situação.

3.3. DO ENSINO RELIGIOSO

"Art. 11 §1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação."


A Carta Magna Brasileira se expressa da seguinte forma, ao abordar o ensino religioso: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.”

Este ponto do Acordo parece ser, depois da imunidade tributária, um dos mais polêmicos e também um dos mais mal interpretados.

Não se prevê aqui nenhum privilégio, monopólio ou concessão à Igreja Católica no ensino religioso ministrado nas escolas da rede oficial de ensino, mas, tão somente, assegurar que, àqueles que professam e desejam ensino confessional, o tenham. Digno de nota é a abertura e a possibilidade de as outras denominações religiosas exigirem o mesmo dos mantenedores destas instituições.

Contudo, não foi assim que muito interpretaram, conforme se pode ler em não poucos artigos e comentários postados na rede mundial de computadores, demonstrativos apenas da mais pura ignorância jurídica e política.

CONCLUSÃO

Diante do exposto e das críticas direcionadas à validade e constitucionalidade do Acordo entre a Santa Sé e a República Federativa do Brasil, não temos outra postura a tomar senão a de defender o embasamento legal do dito tratado, seja em sede de direito internacional, seja em sede de direito interno pátrio.

Em seu texto, nada há que vá de contra o ordenamento jurídico brasileiro. Pelo contrário, todos os seus dispositivos são quase que repetição do que há na Constituição Federal, no Código Civil e em outros diplomas legais.

A laicidade do Estado não significa que o mesmo seja inimigo da religião, sob pena de um desgaste interno em que prejudicados só serão os direitos mais fundamentais e pessoais dos cidadãos. A profissão e a prática da fé é um deles.

BIBLIOGRAFIA

1. Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil.

2. BRASIL. Código Civil Brasileiro.

3. ______. Constituição da República Federativa do Brasil.


4. CNBB. COMUNICADO MENSAL ABRIL/MAIO DE 1990 (VOL 2).

5. __________________________. ABRIL DE 1991.

6. __________________________. MAIO DE 1992.

7. __________________________. ABRIL/MAIO DE 1993 (VOL 2).

8. ________________________. ABRIL DE 1994.

9. ________________________. ABRIL DE 1996.

10. HUSEK, Carlos Roberto. Curso de Direito Internacional. 6ª Ed. São Paulo: LTr, 2006.

INTERNET:


11. Wikipédia, a enciclopédia livre. In Acesso em 09/09/2009, às 22h59m.

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