quarta-feira, 14 de outubro de 2009

AINDA SOBRE O ACORDO IGREJA-ESTADO


O ACORDO IGREJA-ESTADO
NO LIMIAR DA IGNORÂNCIA


A polêmica sobre o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé tomou de assalto as diversas rodas de conversa, desde as mais abalizadas, como a dos juristas, até as mais informais, como a dos amigos, no horário do cafezinho, ou mesmo nas mesinhas de bar dos happy-hour’s.

Numas e noutras, percebe-se desde o apoio e a ação de graças, vindos de mentes que compreendem o benefício que tal ato trará para todos, indistintamente, até a maledicência e o preconceito, que são fruto da ignorância política e jurídica.

Explico-me.

A ignorância política provém do fato de que muitos desconhecem que a Igreja Católica Apostólica Romana é uma instituição bimilenar reconhecida internacionalmente e portadora do status de pessoa jurídica de direito público internacional. O Estado do Vaticano (Stato Città del Vaticano) não deve ser confundido com a Igreja e muito menos com a Santa Sé. O Vaticano é o Estado (território), a Igreja é o “corpo místico de Cristo” espalhado em toda a Terra e a Santa Sé é o poder do papa e dos diversos dicastérios romanos que se concretiza nos atos internos e externos sempre a serviço da Igreja. Mestra em diplomacia, sempre visando estreitar relações com todos os países e tendo assento entre os Observadores Permanentes na Organização das Nações Unidas, na interação da Igreja com as nações soberanas, emerge a Santa Sé com o seu poder que se equipara ao das demais nações soberanas, podendo, desta forma, e em vista de interesses comuns, firmar pactos, convenções e tratados.

Segundo a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (de 1980), artigo 6º, “todo Estado tem capacidade para concluir tratados”. Desta forma, Santa Sé (poder creditado junto às nações) e República Federativa do Brasil, podem assinar acordos, tratado, pactos que visem à manutenção de interesses bilaterais ou à preservação de direitos comuns, como no caso do Acordo em tela, cujo objeto foi o reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica no Brasil. Em síntese, o governo brasileiro reconheceu que Igreja é instituição séria e que merece ser tratada como tal. Não com privilégios como alguns estão afirmando por aí.

A bem da verdade, o citado Acordo deveria ter sido concluído desde a Proclamação da República quando, felizmente, pelo decreto nº 119-A, de 07 de janeiro de 1890, o Marechal Deodoro da Fonseca efetivou a separação entre a Igreja e o Estado e consagrou a laicidade deste, livrando a Igreja do padroado. O problema começou, contudo, quando alguns fervorosos incautos confundiram “laicidade do Estado” com “animosidade religiosa por parte dos poderes constituídos”, praga maior que o padroado e que vigora até os dias atuais, concretizando-se com a real perseguição por parte de autoridades e funcionários públicos que dispensam tratamentos diversificados à Igreja Católica (e também a outras denominações), ferindo garantias e direitos fundamentais, variando de acordo com o ânimo ou convicções pessoais, não poucas vezes movidos pelo preconceito.

Aqui, abre-se o leque para a imensidão da ignorância jurídica, a que nossa “vã filosofia” sequer consegue molhar a “pontinha do pé”, imensos que são os oceanos que existem na cabeça dos que insistem em não querer entender.

Uma vez que o Brasil ainda não é signatário da já citada Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (desde 1992 que o texto tramita no Congresso Nacional para esperando ser ratificado), no ordenamento pátrio, a manifestação e o acordo de vontades no plano internacional estão previstos na Constituição Federal, no artigo 84, VIII, quando trata da competência privativa do Presidente da República, a saber, “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”, que foi exatamente o que aconteceu.

Assinado o Acordo aos 13 de novembro de 2008 na Cidade do Vaticano, o Parlamento Brasileiro o ratificou aos 26 de agosto de 2009 (Câmara dos Deputados), seguido da aprovação (Senado Federal) e conseqüente promulgação do Decreto Legislativo nº 698/2009 pelo presidente do Congresso Nacional, aos 07 de outubro de 2009. Tal decreto, por força de lei, foi transformado automaticamente, no ato de sua promulgação, em Norma Jurídica, sendo imediatamente recepcionado no bojo jurídico pátrio, não carecendo de sanção presidencial. Outro erro que vem sendo veicular inclusive na grande mídia.

A grande celeuma gerada, desde que o assunto veio a público, foi o de que os itens do novo diploma legal ferem a laicidade do Estado Brasileiro. Certamente algum grupo mais exacerbado entrará mais cedo ou mais tarde com uma ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) junto ao Supremo Tribunal Federal, requerendo a eliminação da legislação brasileira, o que com certeza será uma vergonha para o Brasil, considerando que países modernos como a Alemanha, França, Itália, Portugal, Espanha, e outros considerados radicais religiosos como Tunísia e até mesmo Israel ou já fizeram ou estão em tratativas de fazer o mesmo Acordo feito aqui. Ora, nada mais fora de cogitação. O Acordo é plenamente constitucional. E, como dito acima, o Estado laico não pode se considerar “inimigo da religião”. Seria um absurdo uma nação qualquer não reconhecer o valor que a religiosidade traz consigo, mesmo do ponto de vista social, enquanto mantenedora da paz e cultora dos valores que dão embasamento ético, moral, cívico e cidadão a esta mesma nação. Que dirá o Brasil que nasceu aos pés da cruz, durante a celebração da Santa Missa.

Os que defendem que uma ferida no tecido jurídico foi aberta erram vergonhosamente, pois analisam de forma preconceituosa os aspectos pontuais do Acordo que, em síntese, versam sobre a liberdade religiosa (art. 2º), a não interferência do Estado em assuntos pertinentes à administração interna da Igreja, como a criação de dioceses e paróquias (art. 3º § 1º), a manutenção de direitos constitucionais já plenamente mencionados na Carta Magna Brasileira (arts. 5º e 7º), o reconhecimento recíproco de títulos acadêmicos (art. 9º), a obrigatoriedade do ensino religioso (aberto a qualquer denominação religiosa) na rede pública (art. 11), a possibilidade de contrato matrimonial religioso com efeitos civis (art. 12), o respeito ao segredo do ofício sacerdotal (art. 13) e a garantia de possibilidades de a Igreja melhor atingir suas finalidades evangelizadoras, incluindo aqui a imunidade tributária referente aos impostos devidos ao patrimônio, renda e serviços relacionados às atividades essenciais da Igreja (art. 15), bem como a afirmação da inexistência de vínculo trabalhista entre ministros ordenados e fiéis consagrados e dioceses, paróquias e congregações religiosas (art. 16).

Assim, o Acordo entre a República Federativa do Brasil e a Santa Sé sobre o Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil é, na verdade, plenamente constitucional, é um marco histórico para a caminhada jurídica deste país que segue os passos das grandes nações que há tempos já têm seus Acordos firmados com protestantes, muçulmanos, espíritas e tantas outras vertentes cristãs e religiões não cristãs e abre um valiosíssimo precedente jurídico para que as outras igrejas ou comunidades religiosas possam fazer o mesmo, desde que tenham um mínimo de seriedade e organização exigidas por lei.

Jogar pedras no Acordo é dar um “tiro no pé” e demonstrar não só ignorância política, mas também jurídica em que, sendo assim, melhor seria calar e não dar mostras públicas de tamanho disparate.

Pe. Renato Moreira de Abrantes
Acadêmico de Direito
Faculdade Católica Rainha do Sertão – Quixadá- CE

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